Acompanhando três ilustrações da artista plástica Elba Cambraia, a editora Anna Carolina Rizzon compôs um poema de fôlego.
À TERRA DE MINHA ALMA
Anna Carolina Rizzon
À terra de meu corpo
viajo à noite
quando tudo é esboço
e paisagem é mancha de nanquim contra papel negro
e eu deduzo cerca
e pomar
e gado
e casolas seculares
e famílias extensas
e vendinhas à beira da estrada
e desvios ignorados
e tantos outros mundinhos que
ao escolhermos viajar
dispensamos em prol de um
apenas por uma familiaridade vaga
um desejo de ser bem recebidos
— o que, supomos, não aconteceria se por distração
[ ou rebeldia virássemos
uma direita qualquer
Entre a terra de meu corpo e a terra de minha alma
[ há dezenas de outras
uma caralhada de chão asfaltado
outro tanto que nunca verá asfalto
milhares e milhares e milhares de pessoas abstratas
até que se pare para pensar nelas
[não acontecerá com frequência, porque é desesperador]
consideremos, somente
que são anos
e anos
e anos
de gente pavimentando caminho para nós
e que também tudo o que deixamos para trás está ali
[ porque alguém o colocou ali
e que “alguém”
neste caso
não faz jus a uma vagueza particular
mas a um conjuntivo
trata-se dum número tão grande
tão grande
de gente envolvida
que é mais fácil singularizar
Igualmente
como se cada uma fosse um universo criado
[ por seu Deus particular
e todas as edificações e manifestações de vida surgissem assim
pela vontade divina
sem que se questionasse a necessidade de sua existência
as cidades
os vilarejos
as fazendinhas
os musseques
enfim
os aglomerados
quaisquer que sejam
parecem sempre ter estado em seus devidos lugares
ocupando vazios que não poderiam ser ocupados
[ por qualquer coisa que não gente
vontade
e pedra empilhada
E me pergunto
a cada noite em que os atravesso
se estou voltando ou se estou fugindo
ou se à angústia se contrapôs
na verdade
o desejo
igualmente esboço
de ir só para ter a paz desta terra à qual voltar
ou se
numa rebeldia infantil
pura birra
viajo à noite só para me privar do prazer sádico de vê-la ficar para trás
Anna Carolina Rizzon nasceu no Rio de Janeiro, cresceu em Teresópolis e se exilou em São Paulo. É incompetente em diversos segmentos artísticos, mas insiste mesmo assim. Especialmente na escrita. Colabora com a Fazia Poesia e a Revista Úrsula e posta aleatoriedades nos blogs vOltas e h a v e r e s.
Elba Cambraia nasceu em Fortaleza, Ceará. Mora em Brasília, onde cursa Arquitetura e Urbanismo na UnB. Desenha quando arquitetura não faz tanto sentido e outras coisas fazem muito.